As imagens dos últimos domingos chamaram atenção por unir dois assuntos que o brasileiro historicamente gosta de separar: política e futebol. A presença de bandeiras de torcidas organizadas em atos na Avenida Paulista, em São Paulo, em Brasília e no Centro do Rio de Janeiro reacende o debate sobre o elo entre os temas.
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Para Renato Fragoso, historiador especialista no assunto, há um reencontro desde que o Brasil é escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014, principalmente com as manifestações em 2013. Ele ainda conclui que, entre os anos 1980 e 2000, ficou marcado a ascensão das brigas.
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- A partir de 2007 com a seleção do Brasil para ser sede da Copa do Mundo, vai existir um esforço enorme de repensar a relação estádio-torcedor. A partir da Copa do Mundo em 2014, temos um contexto e ambiente futebolístico totalmente diferente para as Torcidas Organizadas.
Em primeira análise, Renato avalia que existe uma diferença histórica entre o torcedor geral e os membros de organizadas. Ele lembra exemplos como a famosa Charanga do Flamengo, que se tornou molde, e atos misturando causas sociais e futebol, como os Camisas Negras no Vasco - que aconteceu na década de 1920, enquanto a profissionalização do esporte só foi oficializada em 1933. Ou seja, a realidade fora dos gramados já é pauta do futebol antes mesmo da sociedade considerar a existência de um jogador.
A ligação do futebol com o debate público também é antiga. Renato ilustra o período político de Getúlio Vargas (1934-45/ 1951-54). O ex-presidente do Brasil se utilizava do esporte como ferramenta para reconhecimento e fortalecimento do novo regime no país. A partir de então existe uma evolução das Torcidas Organizadas.
- Na década de 40, as organizadas se encontravam apenas em dias de jogos com o intuito de apoiar o time. Em 60, ocorre o surgimento das organizadas com modelo presidencial, forças independentes dos clubes, como a Gaviões da Fiel (1969), criada para pressionar o clube a tomar medidas contra a má fase. A fama de violenta surge na década de 1980.
Para Renato, a violência nas arquibancadas ganha holofotes na mídia e espanta o público. Ele ainda avalia um uso de propaganda mercadológica por meio dos jornais.
Segundo dados do livro “A violência no futebol”, do professor da UERJ Mauricio Murad, a média anual de mortes entre 1999 e 2008 é de 4.2 óbitos, sendo que, nos últimos cinco anos citados, houve um aumento para 5.6 óbitos. Entre 2007 e 2008, o aumento foi para sete óbitos por ano.
- Desta forma, em 10 anos, temos uma escalada na violência. Assim como no triênio de 2009 a 2011 temos, respectivamente, 9, 12 e 11 mortes por ano. Em 2012 são 23 óbitos, em 2013 são 30 óbitos - informou Renato.
Boa parte da cultura dentro dos estádios é, historicamente, marcada pela valorização de uma cultura machista de confronto, de acordo com Gustavo Bandeira, professor de Especialização em Jornalismo Esportivo da UFRS e autor do livro "Uma história do torcer no presente".
- Uma forma de realizar esse confronto é através do xingamento. Se xinga o adversário, os jogadores do próprio time, árbitros, dirigentes, polícia,... Essa "autorização" para o insulto era (e muitas vezes ainda é) um acordo tácito que acaba sendo entendido como um consenso - ponderou ele, que segue:
- Se alguém reclamar dessas manifestações, os torcedores que naturalizaram esses xingamentos dirão duas coisas: "Vocês não conhecem os códigos do estádio" e "Esse xingamento só é dito no estádio e durante os jogos, depois não existe mais", o que é uma meia verdade.
A Copa do Mundo, as reformas nos estádios e o dito "padrão Fifa" afastou os "torcedores populares", segundo Renato Fragoso. Com isso, um "projeto de futebol visando somente o lucro" visa a transformação dos estádios em arenas, o que vai além das questões estruturais dos estádios.
- Os torcedores estão frustrados com o aumento dos preços de ingressos, alimentos e bebidas dentro dos estádios, além dos horários péssimos dos jogos. Se enxergam cada vez mais excluídos de um espaço que mexe não só com dinheiro, mas também com sentimentos profundos. Agora temos uma polarização política que voltou com força ao futebol graças ao COVID-19 - comentou ele, que ressaltou os protestos:
- Após a aproximação do presidente Bolsonaro a clubes para a volta do futebol, vimos torcedores, jogadores e dirigentes se manifestando a favor e contra essa volta. Temos uma frustração com a estrutura atual do futebol potencializada pelo momento político e o uso de instituições, inicialmente ligadas ao futebol, como forma de expressão e propagação de ideias.
Os vínculos entre política e futebol são estreitos desde os primeiros tempos do esporte no Brasil, de acordo com o professor de história da UERJ Eduardo Ferraz Felippe. Contudo, o docente lembra que o acirramento das manifestações é uma insatisfação com os rumos governamentais.
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- As Torcidas criticam o racismo, o fascismo e o pouco interesse do governo em cumprir as cláusulas da Constituição de 1988 e defender os mais vulneráveis durante a pandemia. Diferente da pauta fragmentada que existia no passado, hoje, as torcidas se unem contra inimigos comuns e a favor de um bem maior: a manutenção da democracia.