Texto adaptado da reportagem publicada na edição 1509 de PLACAR, de março de 2024
O Campeonato Brasileiro está começa neste sábado, 13 de abril e deve, mais uma vez, ter um número recorde de jogadores estrangeiros em campo. Em 2023, os 20 clubes da Série A contaram com 126 “gringos” em seus elencos, 23 a mais do que os 103 da edição anterior. Este ano já começa com 122 forasteiros e a tendência é de crescimento na próxima janela. O último Brasileirão, aliás, teve como principal destaque o uruguaio Luis Suárez, que foi o maestro soberano da surpreendente campanha do Grêmio, vice-campeão, com apenas dois pontos atrás do Palmeiras.
Agora, sem Luisito (que se juntou ao amigo Lionel Messi no Inter Miami), os olhares se dividem entre velhos conhecidos, como o argentino Germán Cano e o colombiano Jhon Arias, heróis do título da Libertadores do Fluminense; o francês Dimitri Payet, que parece ter recuperado, no Vasco, a boa forma já exibida na Premier League; o xerife paraguaio Gustavo Gómez, multicampeão pelo Verdão; e o também argentino Jonathan Calleri, comandante do ataque do São Paulo; e novas estrelas, em especial o meia Nicolás de la Cruz, também uruguaio, que trocou o River Plate pelo Flamengo por mais de 75 milhões de reais, na mais badalada transação até agora.
Vale lembrar que o esporte chegou ao nosso país pelas mãos de Charles Miller, paulistano filho de escocês que trouxe bolas, chuteiras e um livro de regras no distante 1894. Muitos clubes foram fundados por forasteiros e já tivemos muitos ídolos gringos para quem torcer. Nos anos 1970, os uruguaios Pedro Rocha, Darío Pereyra e Pablo Forlán brilharam pelo São Paulo, enquanto o chileno Elias Figueroa fazia a alegria da torcida do Inter. Na década seguinte, o argentino Doval e o paraguaio Romerito encantaram o Maracanã jogando por Flamengo e Fluminense.
O que se viu em seguida foi uma explosão de brasileiros indo para o exterior, o que abriu espaço para a chegada de mais vizinhos – sim, até o início dos anos 2000 praticamente só sul-americanos vinham para cá. Pouco antes da Copa de 1994, disputada nos Estados Unidos, PLACAR publicou uma reportagem mostrando como nossos atletas de todas as idades tinham se transformado num dos maiores produtos de exportação “made in Brazil”. Em abril de 2014, a CBF autorizou um aumento de três para cinco no número de estrangeiros, e a decisão provocou uma nova invasão gringa, retratada em nossas páginas como “Europa das Américas”. Naquela edição do Brasileirão, tivemos 54 forasteiros em ação, e essa passou a ser a nova realidade local, com uma curva crescente de importações ano após ano.
Nos últimos anos, nos acostumamos a ver o venezuelano Yeferson Soteldo com a camisa do Santos — hoje o baixinho enverga a do Grêmio, onde rivaliza com os colorados Valencia, do Equador e Alario, da Argentina —, o uruguaio Giorgian de Arrascaeta encantando cruzeirenses e flamenguistas. Desde 2019, atletas de 20 países entraram em campo pela Série A, incluindo alguns europeus, africanos e asiáticos. O japonês Keisuke Honda, do Botafogo, e o argelino Islam Slimani, do Coritiba, chegaram aqui com experiência em Copas do Mundo (conheça a história de Kazuyoshi Miura, o Kazu, primeiro asiático a jogar no Brasil,Graças à tecnologia, também é possível monitorar e acompanhar o surgimento de jovens talentos em todo o planeta.
O Fluminense, por exemplo, surpreendeu ao contratar o colombiano Jan Lacumí, de 19 anos, que atuava na segunda divisão local. É uma aposta (numa escala menor) semelhante ao que os europeus fazem com os jovens brasileiros. Para ficar nos dois casos mais recentes, Vitor Roque, 18 anos (ex-Athletico-PR), já veste as cores do Barcelona, enquanto Endrick só espera atingir a maioridade para se transferir do Palmeiras para o Real Madrid. Ou seja, seguimos sendo fornecedores de craques para os mercados europeus, mais ricos e organizados – porém, na comparação com os outros países das Américas, somos o principal polo de atração.
“Com a saída cada vez mais cedo dos nossos atletas, nos voltamos para os vizinhos em busca de jogadores bons com custo bem mais baixo”, explica Cristiano Dresch, presidente do Cuiabá. Thiago Freitas, COO da Roc Nation Sports no Brasil, empresa que administra as carreiras de Endrick, Vini Jr, Lucas Paquetá e Gabriel Martinelli, entre muitos outros, concorda e elenca três fatores para entender a situação atual. “A criação das SAFs trouxe novas injeções de capital para os clubes brasileiros, que passaram a contratar também técnicos estrangeiros, que têm um olhar mais abrangente. A crise econômica da Argentina atrapalha os clubes locais, que já não conseguem competir em termos de salários. E há ainda o desenvolvimento do futebol em países como Equador e Venezuela, que antes não tinham tantos jogadores de qualidade.”
Já estamos perto da Europa?Em termos de recursos, os dois maiores elencos brasileiros (os de Flamengo e Palmeiras) custam 300 milhões de reais por ano. É o dobro do que River Plate e Boca Juniors gastam atualmente. Mas é um décimo do que Barcelona, Paris Saint-Germain e Manchester City gastam com seus jogadores. Sim, segundo relatório divulgado recentemente pela Uefa, esses três gigantes investem anualmente 3 bilhões de reais só com salários! Segundo o tradicional relatório “Money League”, da auditora Deloitte, o Flamengo, clube cuja receita anual já ultrapassa o bilhão de reais, está prestes a entrar para o clube dos 30 mais ricos do mundo (uma lista que, hoje, é composta exclusivamente por europeus
com amplo domínio inglês).
Por mais que jornalistas e torcedores se queixem com frequência do baixo nível do futebol jogado por aqui (tendo a Liga dos Campeões como referência máxima), é fato que o nível vem subindo. A Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS) apontou o Brasileirão de 2023 como o quarto campeonato nacional mais competitivo do planeta. A Série A da Itália foi a vencedora, seguida por Premier League (Inglaterra) e LaLiga (Espanha).
Mesmo para quem não acredita em rankings desse tipo, a realidade é que os clubes brasileiros venceram as últimas cinco edições da Libertadores, o que mostra que estamos, sim, “sobrando” no continente. Com o real valorizado em relação às outras moedas sul-americanas e uma busca mais ativa (e criativa) por reforços vindos de todos os cantos do mundo, o Brasileirão tende a ganhar cada vez mais sotaques. Desde o ano passado, a CBF passou a permitir até sete atletas estrangeiros por equipe a cada partida. Em um confronto contra o Red Bull Bragantino, o Inter chegou a ter nove atletas não nascidos no Brasil em campo (o volante Johnny, americano, e o atacante Wanderson, belga, são naturalizados).
Tudo somado, “sobe a barra” e, na teoria, melhora ainda mais o nível da competição. Há vários anos, jogadores brasileiros prestes a serem dispensados por seus clubes europeus voltam para casa com aquele espírito de recuperar as raízes e fazer a alegria dos torcedores de seus times de coração. Muitos se perguntam se Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, caso chegassem hoje, com quilos demais e disciplina de menos, teriam obtido tanto êxito. Alguns gringos não aguentaram o tranco. O Corinthians, por exemplo, se desiludiu com o paraguaio Matías Rojas, mas agora aposta no equatoriano Félix Torres e no argentino Rodrigo Garro.
Ainda falta muito para podermos nos orgulhar, de verdade, do Campeonato Brasileiro. Falta-nos uma liga de clubes independente da CBF, mas pouco a pouco vamos caminhando. No ano passado, a Série A foi transmitida para mais de 160 países e bateu seu recorde de público – média de 26.733 torcedores por partida, superando os 22.953 de 1983. Os estrangeiros bons de bola são parte relevante desse processo. Nicolás de la Cruz, o craque uruguaio de 26 anos trazido do River, conta que tinha outras propostas, mas decidiu pelo Flamengo pelo tamanho do clube e pela perspectiva de novas conquistas com o time.
Seus dois compatriotas, Arrascaeta e o lateral Guillermo Varela, também influenciaram na escolha. “Conversei com eles e fiquei totalmente
convencido para tomar a decisão.”
Kazuyoshi Miura, ou simplesmente Kazu, como ficou conhecido nos gramados brasileiros, é o que se pode chamar de pioneiro. Nascido em Shizuoka, no Japão, em 1967, ele abandonou o colégio aos 15 anos e viajou com a família para o Brasil buscando um sonho que, à época, não era comum em sua terra: ser jogador de futebol. A J-League nem havia sido criada e o garoto resolveu tentar a sorte no “país do futebol”. Após passagem pelo Juventus da Mooca, estreou pelo time principal do Santos em 1986, aos 19 anos.
Durante os cinco anos em que teve vínculo com o Peixe, o primeiro asiático a jogar profissionalmente por aqui foi emprestado a vários outros clubes do país, como Palmeiras, Matsubara, CRB, XV de Jaú e Coritiba. Voltou ao Santos em 1990 para encerrar sua aventura sul americana. Ao todo, foram 35 jogos e quatro gols pelo time da Vila Belmiro. De volta à terra do sol nascente, Kazu virou ídolo nacional e foi multicampeão pelo Verdy Kawasaki. Seguiu fazendo história ao ser o primeiro asiático a defender um clube europeu, o Genoa, da Itália, em 1994.
Trinta anos depois, pode acreditar, a saga não terminou: com contrato com o Yokohama FC desde 2005, o incansável atacante ainda atua profissionalmente, aos 57 anos, emprestado para o Oliveirense, da segunda divisão de Portugal. “Não aguento mais 90 minutos, mas ainda sei fazer gols”, contou, em bom português, o simpático veterano a Pier Giavelli, colaborador de PLACAR.
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