Tios de Rafaela Silva que moram em Cidade de Deus, na zona Oeste do Rio, afirmam que não reconheceram a fisionomia da judoca quando ela subiu ao tatame, na disputa das semifinais e depois na final que valeu a medalha de ouro na Olimpíada , na última segunda-feira.
Passei a ter esperança quando vi a Rafaela diferente, com aquela cara de má, relata o tio paterno Paulo Henrique Silva. Outro tio, Sérgio Luiz Silva, diz que a sobrinha usou, como nunca, a cabeça. Eu senti que ela estava diferente. Antes, ela ia mais com a força e a vontade. Ontem (segunda), ela trabalhou com inteligência.
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Judô canalizou agressividade da campeã olímpica Rafaela Silva
Os parentes de Rafaela e os amigos se concentraram na rua Jessé, em Cidade de Deus, para acompanhar a luta da atleta na Olimpíada. Sérgio Luiz relata que nunca viu tanto entusiasmo e empolgação das crianças da rua. Tem muito menino nas escolinhas de esportes. Agora, isso deve aumentar, avalia.
A família atribui ao ex-judoca Flávio Canto a conquista de Rafaela. Os pais e tios da atleta dizem que foi no Instituto Reação, projeto social desenvolvido pelo medalhista de bronze em Atenas-2004, que ela passou a canalizar a agressividade.
Rafaela faz parte da primeira geração de adolescentes treinada pelo Instituto Reação, projeto presente hoje nas comunidades de Cidade de Deus, Rocinha, Tubiacanga, Pequena Cruzada e Deodoro. O programa Reação Escola de Judô e Luta conta com 900 alunos, de 4 a 17 anos. O Instituto também desenvolve o Reação Olímpica, que ajuda 220 atletas. Uma série de empresas financia a entidade.
A líder comunitária Márcia Pereira observa que só o envolvimento do Estado e de empresas pode potencializar conquistas como a de Rafaela nas periferias. Presidente da Associação dos Moradores de Cidade de Deus (Amunicom), ela relata que a comunidade mantém com dificuldades um projeto de escolinhas de futebol, tae-kwon-do e capoeira. Cerca de 150 crianças e adolescentes são treinados por voluntários. A gente só tem conseguido promessas de patrocínio de órgãos públicos e empresas, afirma. A gente torce para que a medalha da Rafaela mude essa situação.
Márcia lamenta o declínio da UPP, a Unidade de Polícia Pacificadora. Há quatro anos, o governo do Estado chegou a abrir escolinhas de inglês e espanhol e anunciou a instalação de um centro esportivo e melhoria das escolas. Os cursos de línguas foram fechados. As promessas ficaram nos discursos. A criminalidade voltou a assombrar.
O complexo de favelas de Cidade de Deus começou a se formar nos anos 1960, a partir da chegada de moradores removidos dos morros de áreas nobres da cidade pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Foi na Cidade de Deus, a cinco quilômetros do Parque Olímpico, que os avós paternos e maternos da judoca Rafaela Silva passaram a viver depois de despejos.
Atleta da Marinha brasileira
Terceiro sargento da Marinha do Brasil (MB), Rafaela Silva, gosta muito do elegante uniforme branco que a identifica como parte do pessoal da força naval. O vestido é usado pouco, só mesmo para festas e solenidades. Rafaela, ganhadora do ouro na categoria até 57 quilos do judô feminino nos Jogos Olímpicos, é praça graduada ou suboficial especial e, para as tarefas diárias, prefere o seu traje de trabalho - um quimono. De combate, claro.
Na segunda feira, a sargento não "bateu" continência no alto do pódio. Mais tarde, comendo um hambúrguer triplo com batatas fritas, Rafaela justificou-se: teve medo de perder a medalha por causa do gesto.
A relação de Rafaela com a Marinha começou em 2014, quando foi integrada ao Programa Olímpico. No Rio, há 145 atletas militares na delegação brasileira. Uma chegada formal, por meio de Edital Público do Ministério da Defesa e, embora a lutadora de 1,69m já trouxesse com ela a medalha de prata dos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, um Mundial e vários títulos internacionais, teve de passar pelos 45 dias do rigoroso EHP, o Estágio para Habilitação de Praças.
No Centro de Educação Física, Rafaela encarou a dureza das provas de resistência física, sobrevivência, condicionamento, tiro. Não houve nenhum problema para a menina da Cidade de Deus, lembram seus companheiros do Cefan - houve até uma certa facilidade, nos exercícios de autodefesa ou de neutralização de oponentes.
Rafaela seria envolvida em uma eventual mobilização de emprego da força? É pouco provável, explicou um oficial da reserva ligado ao setor esportivo. A judoca é uma contratada temporária da Defesa, com claros objetivos a serem atingidos no aperfeiçoamento de sua especialidade. Se o trabalho produzir conhecimento e informações que possam ser transferidos para a tropa, tanto melhor.
Embora à disposição da Marinha, e recebendo soldo de cerca de R$ 3 mil, Rafaela Silva segue orientação técnica da Confederação Brasileira de Judô, que programa os locais e os tipos de seus dois turnos diários de treinamento. Ela pode usar quaisquer instalações e recursos da MB. As práticas são físicas e táticas, com apoio médico, odontológico, fisioterápico e nutricional. Há mais: um amplo sistema eletrônico monitora a performance, mede o desempenho e projeta a evolução da judoca.