A demissão do diretor de Esportes do Comitê Olímpico do Brasil (COB), Jorge Bichara, na tarde da última terça-feira, não só pegou os atletas e membros do movimento olímpico de surpresa como deixou o ambiente em clima de apreensão. Para além da questão política, os atletas estão preocupados com a preparação para os Jogos Olímpicos de Paris-2024, daqui a cerca de 2,5 anos. Entre os principais temas estão a preparação em si e a programação para chegar à Olimpíada.
Isaquias Queiroz, dono de quatro medalhas olímpicas sendo uma de ouro em Tóquio-2020, disse que a demissão de Bichara já atrapalha sua caminhada para Paris-2024. Ele se disse "abalado psicologicamente" e explicou: se não fosse o ex-diretor, ele não teria se dedicado à seleção permanente de canoagem e que após a morte de seu treinador, Jesus Morlan, ele não teria se mantido no grupo para chegar a Tóquio.
Veja abaixo galeria de fotos de Isaquias Queiroz:
Isaquias disse que "espera que os chefões de terno não tirem mais ninguém da equipe do Bichara porque vai nos prejudicar mais ainda". Ele teme que a seleção permanente seja impactada com os novos rumos da diretoria de Esportes:
— O Jesus me dava as broncas e o Bichara me acalmava, me ensinava. Em 2021, estava estressado com a rotina da seleção e foi o Bichara que me colocou de novo no caminho, no grupo. Por isso eu digo, não teria sido campeão olímpico se não fosse pelo Bichara — elogia Isaquias, em entrevista exclusiva ao GLOBO: — Espero que o presidente do COB tenha vergonha na cara e vá a público explicar o motivo da demissão. Não tem, né? Eu não posso me esconder agora. E espero que não seja punido por isso. Quando fui ouro no Japão, o presidente nem me deu um abraço. O Bichara chorou comigo.
Yane Marques, presidente da Comissão de Atletas do COB (CACOB), disse nesta quarta-feira que, diante do fato consumado, os atletas querem respostas, ainda não dadas pela entidade. Ela contou que o presidente Paulo Wanderley, que demitiu Jorge Bichara apesar do último ciclo olímpico vitorioso, tem um grupo de Whatsapp com os atletas e que ele se limitou a compartilhar a nota oficial do COB. E não falou mais nada sobre o assunto.
Em nota curta, o COB agradeceu "ao profissional pelos serviços prestados ao longo de sua trajetória" e informou que Rogério Sampaio, diretor-geral, assume a função interinamente.
— Nem seria saudável reverter este caso. O que os atletas precisam é de segurança e que o caminho até Paris será bem planejado. Porque as competições classificatórias começam agora. Imagino que esta também seja a preocupação do presidente Paulo Wanderley— declarou a representante. — Paulo Wanderley tem canal aberto com os atletas e normalmente interage com todos. Mas não falou mais nada, mesmo diante dos questionamentos. Teve muita mensagem trocada no grupo ontem. Todos querem entender mais. Não é uma questão de achar certo ou errado. Porque ele (presidente) tem a prerrogativa de demitir um funcionário. A preocupação é com o futuro dos atletas. Querem ser tranquilizados e saber quem será o responsável pela programação direta da preparação olímpica.
O presidente do COB foi contactado pela reportagem nesta terça-feira e nesta quarta-feira e em resposta disse que "não tenho o que acrescentar". A assessoria de imprensa do COB também informou que não há nada a acrescentar ao conteúdo da nota e que o substituto de Bichara está sendo discutido.
Bichara é considerado o principal responsável pelos recordes de medalhas nos Jogos Pan-Americanos de Lima e nas Olimpíadas de Tóquio. No Japão, foram 21 medalhas conquistadas, sete de ouro, seis de prata e oito de bronze, duas a mais do que o total há seis anos, no Rio de Janeiro. Atletas, ex-atletas, presidentes de confederações e até de comitês olímpicos estrangeiros se mostraram solidários a Bichara.
Nos bastidores, comenta-se que é exatamente por causa disso, ele foi demitido. O ex-diretor, que trabalhava há 17 anos no COB, não é da panela de Wanderley e o presidente quer ter "100% de domínio da entidade".
Um atleta comentou que Bichara tinha relação muito próxima dos atletas em geral e que sua diretoria é "praticamente a responsável pelas nossas carreiras", é a responsável por "pensar o caminho a percorrer". Outro disse que Bichara "é uma pessoa que se envolvia diretamente nisso (preparação)" e que "construiu muita coisa".
Frases como "que paulada", "isso é péssimo para nós", "foi um tiro no pé" foram explicitadas.
O ciclista Henrique Avancini, que chegou a liderar o ranking mundial do mountain bike, também não teve medo de se posicionar. Em sua rede social lamentou o fato: "Chocante! Beira o absurdo! Jorge Bichara é uma das pessoas mais competentes com quem tive a oportunidade de trabalhar".
O nadador Bruno Fratus, bronze em Tóquio-2020, declarou ao GLOBO que "está chocado e no chão":
— Bichara é extremamente querido e respeitado por todos os membros do Time Brasil. A notícia da demissão causou espanto e despertou uma curiosidade imensa sobre o motivo. Posso falar sem medo de errar que se não fosse por ele nenhuma das minhas quatro medalhas de mundial, sete pan-americanas e o bronze olímpico jamais teriam acontecido — falou o nadador. — O sentimento que fica é de extremo respeito, gratidão e esperança de que quem quer que assuma o cargo tenha a mesma competência, garra e amor à camisa.
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Disputa política
Ricardo Leyser, membro independente do Conselho Administrativo do COB, explicou que o conselho não pode interferir nas decisões do presidente mas que o grupo vai procurar entender o contexto e os motivos pelos quais a demissão ocorreu. E disse que é preocupante não ter ainda um nome de peso para o cargo e que esta substituição deveria ter sido pensada.
Esclareceu ainda que nesta quinta-feira haverá uma reunião do conselho, mas a pauta do encontro será os Jogos Sul-americanos da Juventude, no final de abril, em Rosário.
— Não é uma atribuição estatutária do conselho validar ou não uma demissão ou uma contratação. Mas, assim como todos, me preocupo com a forma como a demissão foi feita, me pareceu atropelada, sem um substituto já escolhido. Não há uma decisão sobre sucessão, não há um nome de peso técnico e por isso não é uma situação confortável para ninguém — analisou Leyser. — A comunicação, inclusive, foi ruim.
O vice-presidente, Marco La Porta contou que só soube da decisão de Paulo Wanderley quando ela foi comunicada oficialmente, e que ele não concorda com ela. La Porta considera que Bichara era um diretor vencedor e que desempenhava um ótimo trabalho com sua equipe. Disse ainda que "não podemos deixar que a política destrua tudo o que vem sendo feito”.
— Fiquei incomodado de não ter participado da decisão — declarou o vice-presidente que em conversa com Wanderley não avançou no tema:— Ele disse que a decisão foi dele, que eu tenho o direito de não concordar e "seguimos". Se ele acha que precisa renovar...
La Porta era próximo de Bichara e foi o chefe de missão das vencedoras delegações brasileiras Jogos Pan-Americanos de Lima-2019 e dos Jogos Olímpicos de Tóquio-2020.
Também é comentado nos bastidores que La Porta, que sempre foi aliado de Wanderley, está "sendo oportunista para surfar na crise", uma vez que será candidato à presidência em 2024.
Segundo comentários, eles teriam uma espécie de acordo em que Wanderley não se lançaria candidato e apoiaria seu vice e que este era um "caminho natural". Mas, o atual presidente deve concorrer.
— Não estou me aproveitando de nada. Minha manifestação foi contra a demissão e nada mais do que isso... Não sei se serei candidato e também não sei se o presidente será — negou La Porta, que já havia declarado que gostaria que a disputa entre eles não chegasse na esfera esportiva.
La Porta afirmou que não quer que esses dois anos e meio seja "um inferno dentro do COB".
— Me propus a ficar quieto no meu canto e deixar ele fazer do jeito que ele quisesse. O que eu queria era blindar o esporte para não atrapalhar os resultados de Paris. Isso não podia chegar ao esporte, mas agora chegou. A partir do momento que chegou no esporte está deflagrado o processo. E não tenho mais porque ficar quieto.
Marcus Vinícius Freire, ex-diretor técnico e ex-superintendente executivo de esportes do COB, afirma que uma decisão como essa, "100% do presidente", sem ouvir seus conselhos e comissões, não deveria acontecer atualmente no Esporte brasileiro e que o Comitê de Ética da entidade deveria abrir processo de investigação interna para entender e responsabilizar as consequências deste "ato monocrático".
O Comitê citado não tem carta branca para abrir investigações e "trabalha por demanda", diante de uma denúncia que pode ser feita por qualquer pessoa física.
— Era necessário, no mínimo, uma transição profissional, com transferência de conhecimento. E isso assusta um pouco. Quem decidiu por esta demissão realmente não entendeu a função de um diretor de Esportes. É o relacionamento principal com os atletas, treinadores e com fornecedores do mundo inteiro. Ou então entendeu tudo e exatamente por isso tomou esta decisão.
Freire acredita que a corrida para Paris já foi prejudicada:
— O que tem se falado no meio e que é a maior preocupação é que não se enxerga uma pessoa com expertise para o cargo. E isso vai prejudicar o Esporte brasileiro. O mercado se pergunta sim como isso vai repercutir em Paris-2024.
É a pergunta que não quer calar.