A primeira mulher a apitar um jogo de futebo l na história já não tem mais o vigor físico de antes - embora a mente ainda corra a mil. Também pudera: foram três infartos, uma cirurgia cardíaca e duas no seio, em decorrência de um câncer. A pressão é alta. Mas com a mesma dignidade de quem ousou desafiar uma legislação do século passado que vetava envolvimento de mulheres no futebol, Léa Campos pede ajuda.

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Léa Campos se tornou a primeira árbitra mulher do futebol mundial
Arquivo pessoal
Léa Campos se tornou a primeira árbitra mulher do futebol mundial


Em tempos de coronavírus, ela viu o marido perder o emprego enquanto aguardava uma cirurgia para tratar do câncer de próstata. Consequentemente, a única fonte de renda secou. Antes mesmo da pandemia bater à porta nos Estados Unidos, onde mora, a brasileira de 75 anos já não conseguia trabalhar: um colar cervical virou adereço desde fevereiro, após uma queda. O saldo negativo disso tudo foi a incapacidade de pagar o aluguel. Despejado, o casal foi parar no quarto da casa de um amigo em Nova York e já se vê na iminência de precisar sair.

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A esperança a curto prazo vem do Brasil, por meio de uma mobilização voluntária da arbitragem. Integrantes dos quadros masculino e feminino, além de instrutores e dirigentes do apito nacional, estão unidos numa campanha para arrecadar fundos com o intuito de auxiliar a pioneira. Vídeos já circulam via Whatsapp desde o fim de semana e, nesta segunda-feira, as postagens começam em outras redes sociais. Nomes como Leonardo Gaciba, Ana Paula Oliveira, Raphael Claus e Edina Alves Batista estão engajados.

- É um movimento bonito. Nunca em minha vida esperei passar por uma situação como essa - conta Léa Campos ao GLOBO.

A brasileira é casada com Luis Medina, colombiano, de 62 anos. Ele trabalhava em uma empresa que organizava eventos sociais para missões diplomáticas, mas a pandemia interrompeu tudo.

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- Onde tira e não põe, acaba. Minha situação se agravou exatamente devido ao coronavírus. Aluguel aqui te come pela perna, sem te pedir licença. Não importa se em chulé ou não - resume a ex-árbitra.

Ao longo da vida, Léa já fez de tudo um pouco. Como jornalista, trabalhou em rádio, TV, e há até mês passado ainda escrevia uma coluna para um jornal de Nova Jersey. Antes, tratava de política. Ultimamente, após receber algumas ameaças, a cruzeirense se concentrou no esporte. Léa também precisou parar com a produção de doces, bolos e salgados, algo que ajudava a complementar a renda. Apesar da crise agravada pelos problemas físicos, ela tenta manter a mente sã, até fazendo trocadilho com o vírus do momento:

- Eu sou coroa, não quero encontrar com um coroa. Estou bem servida com o marido que eu tenho (risos). Tem que levar na brincadeira para sofrer menos. Não é para não sofrer.

Parte do sofrimento é herança do tempo que ainda estava em solo brasileiro. Um acidente grave em 1974 interrompeu a carreira na arbitragem. Três anos antes, Léa atendeu ao convite da Fifa para apitar um torneio amistoso e mundial de futebol feminino no México. Ela recorreu até ao então presidente, Emílio Garrastazu Médici, em plena ditadura, para que seu diploma obtido junto à Escola de Árbitros do Departamento de Futebol Amador, em 1967, fosse reconhecido. Isso foi um enfrentamento À Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidade que se tornaria a CBF, cujo presidente era João Havelange. A contrariedade se baseava numa lei de 1941: "às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza".

Ao longo da vida, foram 108 cirurgias na perna, segundo ela. Nos Estados Unidos, Léa colocou uma prótese no joelho, porque "se espichava, doía. Se dobrava, doía". Apesar dos elogios à capacidade dos médicos americanos, Léa tenta desmistificar o que representa morar nos Estados Unidos.

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- Todo mundo acha que morar nos Estados Unidos é glamour. E não é assim. Brasileiros que moram aqui querem mostrar uma opulência que não existe aqui. Chega na casa dele e nem café tem. Querem mostrar um falso status. E eu não sou assim. Nunca ostentei nada - conta ela, que completa:

- É duro ter que pedir. Tudo na vida acaba, tudo passa.

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