Uma excursão do Santa Cruz para disputar amistosos na década de 1940 começou com uma ameaça nazista, passou por uma viagem de navio com ladrões e terminou em tragédia, com jogadores do time morrendo durante o trajeto.
A saga começou logo no início do ano de 1943. Logo após a virada do ano, no dia 2 de janeiro, o time pernambucano embarcou em um navio com destino a Natal, no Rio Grande do Norte.
Em 1943 o mundo vivia dias nebulosos, com a Segunda Guerra Mundial rolando e a tensão de ataques aéreos e marinhos que poderiam acontecer a qualquer momento.
Um ano antes, em 1942, cinco navios brasileiros foram afundados por submarinos alemães, o que fez o Brasil declarar guerra aos países do Eixo, liderados por Alemanha, Itália e Japão, e ficar ao lado dos Aliados, grupo liderado por Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética.
Por conta disso, a costa brasileira, em especial no Nordeste, ficou cercada por submarinos alemães prontos para atacar qualquer embarcação que minimamente apresentasse perigo.
Por precaução, o navio que levou o Santa Cruz de Recife para Natal foi acompanhado durante todo o trajeto por dois navios da Marinha brasileira.
Apesar do medo constante, a viagem aconteceu sem problemas e o time chegou são e salvo em Natal para disputar um amistoso contra a seleção do Rio Grande do Norte.
Logo na estreia da excursão o Santa Cruz fez bonito e goleou por 6 a 0.
O planejamento inicial da excursão era sair de Natal, viajar até Belém do Pará para jogar mais alguns amistosos, e de lá voltar de navio para Recife no final de janeiro.
O motivo da viagem era puramente financeiro. O Santa Cruz não tinha um calendário extenso para disputar durante o ano todo e precisava arrecadar dinheiro para manter o time em funcionamento.
Então, os amistosos pelo Norte e Nordeste serviam para arrecadar dinheiro com a bilheteria e também fortalecer a imagem do time em outros estados.
Vale lembrar que em 1943 as viagens de avião eram caríssimas e totalmente inacessíveis para um time de futebol. Por isso, o jeito era viajar ou de ônibus ou de navio.
E mais uma vez de navio, o Santa Cruz deixou Natal para chegar em Belém para uma série de amistosos contra times locais.
A turnê por Belém do Pará
A estreia na capital paraense aconteceu contra o Transviário no dia 10 de janeiro. O resultado? Mais uma goleada do Santa Cruz: 7 a 2.
Quatro dias depois o time venceu a Tuna Luso por 3 a 1, e 3 dias depois, em 17 de janeiro, veio o primeiro revés da excursão: derrota por 5 a 2 para o Remo.
Na partida contra o Remo alguns jogadores se sentiram mal e foram diagnosticados com uma intoxicação alimentar.
Mesmo assim, o Santa Cruz disputou os dois últimos amistosos programados em Belém. Empate em 3 a 3 contra a seleção paraense, e um agitado 4 a 4 contra o Paysandu.
O bom futebol apresentado pelo Santa Cruz nos amistosos em Belém chamou a atenção dos times de Manaus, que convidaram o time para esticar a excursão até a capital amazonense.
E lá se foi o time pernambucano para mais uma viagem de navio, dessa vez pelos rios da Amazônia.
Segunda parada: Manaus
O trajeto entre Belém e Manaus durou duas longas semanas e para amenizar o tédio vários jogadores costumavam passar as madrugadas jogando cartas e tomando alguns drinques com a tripulação do navio.
A chegada em Manaus aconteceu em 6 de fevereiro e logo no dia seguinte o Santa Cruz enfrentou o Olímpico, debaixo de muita chuva e de um campo totalmente encharcado.
Os dirigentes do Santa Cruz até tentaram adiar o jogo, mas não teve jeito. O time teve que entrar em campo e, bastante desgastado pela longa viagem até Manaus, perdeu por 3 a 2.
Depois, vieram mais 4 jogos na capital do Amazonas: vitórias por 5 a 1 contra o Rio Negro, 6 a 0 contra o Nacional, 5 a 4 novamente contra o Rio Negro, e uma derrota por 2 a 1 pra seleção do Amazonas.
O Santa Cruz chegou a ser convidado para disputar alguns jogos no Peru e na Guiana e aceitou o convite.
Mas, relembrando, o mundo vivia a Segunda Guerra Mundial e uma viagem pelo Brasil já era complicada. Uma viagem internacional, então, estava totalmente fora de cogitação.
A CBD (Confederação Brasileira de Desportos) teve mais juízo que os dirigentes do Santa Cruz e barrou a saída do time do Brasil. Caso o time ultrapassasse a fronteira para qualquer país, ficaria suspenso por 90 dias.
Então, não teve jeito. A excursão teve que continuar em terras brasileiras. O Santa Cruz embarcou em mais um navio para fazer a viagem de volta de Manaus para Belém.
E nesse trajeto tudo começou a desandar de uma maneira surreal. Alguns jogadores que sofreram com a intoxicação alimentar na capital paraense voltaram a sentir os efeitos e pioraram bastante no trajeto entre Manaus e Belém.
O retorno trágico para Belém
Dois jogadores apresentavam sintomas mais graves: o goleiro King e o atacante Papeira .
Eles chegaram a ser medicados mas os remédios não fizeram efeito, principalmente porque os jogadores não seguiram à risca as recomendações em relação à alimentação.
Com a situação de quase calamidade, com vários jogadores passando mal e dois deles em situação bastante grave, os dirigentes do Santa Cruz decidiram voltar para Recife.
Porém, nesse meio tempo o governo brasileiro proibiu a navegação na costa brasileira por conta do aumento da tensão da Segunda Guerra.
O dinheiro arrecadado até ali com a excursão não era suficiente para comprar passagens aéreas pro time todo, então a solução foi ficar em Belém e marcar mais alguns amistosos para bancar a estada dos jogadores até que a viagem de navio para Recife fosse liberada.
Então, mais um amistoso contra o Remo foi agendado, para o dia 2 de março. O Santa Cruz, desfalcado de vários jogadores, venceu o time paraense por 4 a 2.
Enquanto isso, o goleiro King e o atacante Papeira pioraram de saúde e tiveram que ser internados no Hospital Dom Pedro I, em Belém.
Na madrugada do dia 3, veio a notícia que abalaria de vez a excursão: Ericson Viana Dias, que tinha o apelido de King, não resistiu e faleceu no hospital. A causa da morte foi um diagnóstico de febre tifóide, doença que também atingia o atacante Papeira.
A febre tifóide está associada a condições precárias de saneamento básico e higiene e, segundo o site do Ministério da Saúde, pode matar se não for tratada adequadamente.
O goleiro King acabou sepultado em Belém, já que com as proibições da navegação, não havia como levar o corpo para Recife.
Uma curiosidade é que o goleiro não era um jogador registrado pelo Santa Cruz, e sim pelo América Futebol Clube de Recife, que cedeu o goleiro para o Santa Cruz apenas para essa excursão, da qual ele jamais voltaria.
Nos dias de hoje, a morte de um jogador durante uma turnê de amistosos certamente faria o time abandonar a excursão e voltar para casa, até mesmo como forma de respeito pela vítima.
Mas em 1943 o Santa Cruz não podia voltar para casa de navio, não tinha dinheiro para voltar de avião e também não dispunha de recursos para pagar hospedagem e alimentação de todos os jogadores em Belém.
A saída foi marcar mais amistosos para conseguir dinheiro para pagar todos os custos com a viagem, que já durava mais de 2 meses.
Assim, três dias depois da morte do goleiro King, o Santa Cruz entrava em campo para enfrentar o Paysandu, num domingo de Carnaval. Em campo, empate em 1 a 1.
Internado no hospital entre a vida e a morte, o atacante Papeira acabou não resistindo e faleceu enquanto seus companheiros jogavam contra o Paysandu. A segunda vítima fatal de uma excursão que não tinha mais nenhuma condição de continuar.
Mas, acredite. Ela continuou.
O jornal Diário de Pernambuco estampou no dia 9 de março a manchete: "O Santa Cruz anuncia novos jogos, apesar da morte de dois de seus jogadores".
Na reportagem, o jornal ainda criticou o fato do Santa Cruz entrar em campo contra o Paysandu “enquanto o atacante Papeira agonizava no hospital, com mais algumas miseráveis horas de vida.”
Seis dias depois, em 14 de março, o Santa Cruz empatou em 0 a 0 contra a Tuna Luso.
O dinheiro arrecadado pelo Santa Cruz na excursão já estava no limite, principalmente por conta dos gastos com a internação e sepultamento dos dois jogadores falecidos.
A Federação de Futebol do Pará ficou sabendo da situação de calamidade que o clube pernambucano se encontrava e agendou mais um amistoso, desta vez contra um combinado de atletas do Remo e do Paysandu.
Toda a renda da bilheteria da partida seria destinada às famílias de King e Papeira.
Em campo, um empate em 3 a 3, para um estádio praticamente vazio, como noticiou o Diário de Pernambuco no dia seguinte à partida.
Ainda havia tempo pra mais três amistosos na capital paraense.
Em 21 de março, derrota por 5 a 2 pra Tuna Luso.
No dia 28 de março, como se já não bastasse a maratona de jogos, o Santa Cruz entrou em campo duas vezes no mesmo dia. Vitória por 1 a 0 novamente contra a Tuna Luso e derrota por 2 a 1 para o Transviário.
No próprio dia 28 de março, o Santa Cruz começava a sua viagem de volta a Recife, mas essa seria uma viagem cheia de escalas.
A saga sem fim na volta para Recife
Primeiro, uma parada em São Luís do Maranhão. E na viagem de navio entre Belém e São Luís, mais histórias absurdas.
Para economizar dinheiro, os jogadores trocaram suas passagens da primeira classe para a terceira classe e por isso tiveram que viajar junto a um grupo de presidiários que estava sendo transferido de Belém para São Luís.
Na chegada à capital maranhense, o navio que transportava a delegação ficou retido. A saída? Marcar mais amistosos para bancar os custos do time.
Entre os dias 4 e 15 de abril, o Santa Cruz disputou seis amistosos em São Luís, com 3 vitórias, 2 empates e 1 derrota.
A navegação na costa brasileira finalmente foi liberada e os jogadores se preparavam para a viagem de volta a Recife, mas logo depois da partida o navio teve que voltar para São Luís por conta da suspeita de submarinos alemães cercando a região.
O jeito foi viajar de trem de São Luís até Teresina, no Piauí. No caminho, os vagões descarrilaram duas vezes, mas sem deixar vítimas.
Chegando em Teresina, mais um amistoso agendado, desta vez contra a seleção do Piauí, em 18 de abril. O Santa Cruz venceu o agitado confronto por 4 a 3.
De Teresina, a delegação do Santa Cruz embarcou em um ônibus e foi parar em Fortaleza, última parada da excursão, onde perdeu para o Ceará em mais um amistoso, no dia 25 de abril.
O jornal Diário de Pernambuco ainda relatou que o time foi abandonado em Fortaleza pelo presidente Aristófanes Trindade, que largou a equipe na capital cearense e voltou para Recife sozinho.
Na madrugada de 29 de abril, em mais uma viagem de ônibus, a delegação do Santa Cruz finalmente chegou em Recife, quase quatro meses depois do início da saga.
A essa altura o campeonato pernambucano já estava em andamento e o Santa Cruz já havia disputado duas partidas com um time alternativo.
No final, o Santa Cruz ainda ficou com o vice-campeonato pernambucano de 1943. O campeão foi o Sport, em um torneio bastante bagunçado e que nem teve todos os seus jogos disputados.
A camisa coral viajou 120 dias, enfrentou a guerra e a morte, e voltou para casa, provando que a história do Santa Cruz é, acima de tudo, uma épica lição de resistência.