A tag #MeToo (eu também, em inglês), utilizada nas últimas semanas para mostrar casos de abusos sexuais, ganhou um novo relato esta semana. Breanna Stewart , estrela do Seattle Storm, time da WNBA , a liga de basquete norte-americana, e medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio, com a seleção dos Estados Unidos, escreveu uma carta emocionante onde conta que foi vítima desde a sua infância, sendo que a primeira vez que a molestaram ela tinha apenas nove anos.

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Breanna Stewart, estrela do Seattle Storm e da seleção norte-americana de basquete, foi abusada sexualmente na infância
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Breanna Stewart, estrela do Seattle Storm e da seleção norte-americana de basquete, foi abusada sexualmente na infância

"Eu chorei. Eu choro mais depois de contar a alguém que é importante para mim. Falar sobre o que eu passei, explicando tudo, acaba comigo. Eu sou forçada a reviver isso. O que aconteceu foi real. Não foi apenas um pesadelo terrível. Não foi uma outra vida que eu vivi em outro tempo. Tenho raiva por ele ter se aproveitado pelo fato de eu ser criança. Nunca vou conseguir ter esse tempo de volta. E as memórias que eu ainda tenho, nunca serei capaz de apagar", afirmou a estrela norte-americana.

"Às vezes, eu desejo ter mais alguns buracos negros. Mesmo que eu jogue em frente a milhares de pessoas ou fale com repórteres, tenho momentos silenciosos todos os dias que ninguém vê. Muitas vezes, quando penso nisso. As memórias surgem como um raio", continuou Breanna Stewart.

A atleta conta que os abusos deixaram "buracos negros" em sua vida. Quando lembra dos casos hoje, ela ainda fica em silêncio. O homem que a violentou era um amigo da família e ia em uma das casas de parentes em que ela dormia. Um ano depois, quando ela teve coragem de contar à mãe, ele foi preso. Segundo ela, o basquete foi uma válvula de escape para esquecer o sofrimento.

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A jogadora dormia em um sofá e foi onde aconteceu a maior parte dos abusos. Ela conta que os cheiros de cigarros e sujeira do homem ainda permanecem em sua memória, mas que ela tem conseguido lidar melhor com o trauma aos poucos.

"Eu queria jogar. O basquete tornou-se uma espécie de espaço seguro para mim. Mas nenhum espaço parecia completamente seguro. Eu sabia o que ia acontecer quando eu fosse para aquela casa. Mas como você diz a seus pais que você não quer fazer uma visita - nunca - sem explicar o por quê? Eu sentia como se eu não pudesse contar a ninguém. Quando nada acontecia, eu pensava: obrigada. Mas mesmo na minha cama, eu ficava nervosa. Isso me assombrou. Eu era tão jovem. Mesmo naquela idade, eu sabia que o que estava acontecendo estava errado. Eu sentia que era errado. Mas também foi confuso", acrescentou.

Leia a carta completa

"Eu me lembro como era o seu cheiro.

Cigarros e sujeira. Tipo um metal também.

Ele trabalhava com construção e fumava. Você não consegue realmente lavar para tirar esses cheiros.

Minha família estava perto. Eu costumava dormir em casas de parentes o tempo todo. Ele morava em uma das casas em que eu mais dormia. Havia um grande sofá na sala de estar e um sofá menor para duas pessoas embaixo de uma janela em frente ao gramado. Eu ficava acordada até tarde, vendo TV no sofá depois que todos iam dormir. Este também era o lugar onde eu dormia - não havia uma cama ou quarto de hóspedes. Eu era uma tímida menina de nove anos de idade, com um corpo longo e magro e uma cabeça que parecia muito grande. Eu não cabia no sofá.

Mudava os canais, bem acordada, sob um grande cobertor.

Eu nem sempre estava sozinha. Às vezes, havia outra pessoa dormindo no sofá. Mas eu sempre era a única acordada quando isso acontecia.

Eu ouvia os seus passos descendo as escadas.

Ele se sentava ao meu lado, fingindo estar vendo televisão. Às vezes, ele nunca subia as escadas para dormir e ficava ali me esperando no sofá.

Eu sabia o que estava por vir.

Não sei como dizer esta parte. Eu não contei a muitas pessoas. Eu não sou a pessoa mais vulnerável - eu não falo muito sobre meus sentimentos - então isso é desconfortável.
Fui molestada por anos.

A TV cintilava, e tudo ficaria quieto. "Está O.K.", ele diria. Ele me tocava e tentava fazer com que eu lhe tocasse também.

Às vezes, eu tentava afastar o meu braço, mas não era tão forte. Eu era apenas uma criança.
Havia sempre aquele cheiro - cigarros e sujeira.

Eu não fazia barulho. Ninguém sabia o que estava acontecendo.

Você sabe esses sonhos que você tenta correr, mas o seu corpo não se move? Era eu: paralisada, silenciosa.

Às vezes, eu me perguntava o que aconteceria se eu simplesmente gritasse. Qualquer coisa.
Um nome.

"Pare!"

Ou se alguém acabasse de acordar?

Isso nem sempre acontecia à noite. Às vezes, eu saía da escola e isso acontecia em plena luz do dia.

Ele sempre conseguia encontrar uma maneira de estar perto de mim em público. Era sutil: ele se sentaria junto a mim em uma mesa, ou, quando ninguém estava assistindo, ele tentaria tocar minha bunda. Coisas que só eu notava.

Mas à noite...

Eu esperava esses passos para rangir. Ou ele estava lá, sentado ao meu lado no sofá, me esperando, iluminado pela TV.

Não conseguia dormir. Eu estava sempre em alerta.

Eu só estava jogando basquete há dois anos naquela época - ligas locais e AAU. Meus pais me colocaram no esporte apenas para me manter ocupada. Eu era uma criança com muito tempo livre e nada para fazer. Eventualmente, ninguém teve que me fazer ir. Eu queria jogar. O basquete tornou-se uma espécie de espaço seguro para mim. Mas nenhum espaço parecia completamente seguro.

Eu sabia o que ia acontecer quando eu fosse para aquela casa. Mas como você diz a seus pais que você não quer fazer uma visita - nunca - sem explicar o por que? Eu sentia como se eu não pudesse contar a ninguém.

Quando nada acontecia, eu pensava: obrigada.

Mas mesmo na minha cama, eu ficava nervosa. Isso me assombrou.

Eu era tão jovem. Mesmo naquela idade, eu sabia que o que estava acontecendo estava errado. Eu sentia que era errado. Mas também foi confuso.

Eu lembro que, por volta da quinta série, ter uma quedinha por um menino da minha escola. É a idade que você começa a ter "crushes" (paixões). Mas toda vez que eu pensava no meu "crush", eu pensava nesse outro cara. Não conseguia separar essas duas coisas. Tudo o que eu queria era pensar sobre esse menino, quando tudo o que eu conseguia fazer era pensar nesse homem e o que ele fez comigo.

Por dois anos - o período em que eu fui molestada - nunca acostumei com a noite.
Teve uma noite que eu lembro vividamente.

Eu tinha 11 anos, e estava na minha cama. Meus pais tinham acabado de construir uma nova casa. Eu estava acordada por volta das 3 da manhã. Eu estava acostumada a estar acordada naquela hora.

Eu entrei no quarto dos meus pais.

"Mãe? Mãe, eu tenho que te contar uma coisa."

Ela se sentou e apenas olhou o meu rosto. Eu a levei de volta ao meu quarto. Eu me deitei na minha cama enquanto ela estava sentada na ponta.

Eu apontei para as minhas partes baixas e disse: "Mãe, ele me tocou aqui embaixo".
Quando eu contei a ela, puxei os cobertores sobre a minha cabeça. Eu estava com medo novamente.

Ela acordou meu pai.

É aqui é onde os detalhes ficam difíceis para mim. Há algumas partes que não me lembro sobre aquele dia. Ouvi dizer que é comum com o trauma - sua mente substitui memórias com espaços em branco. Como uma Ctrl + Alt + Delete para qualquer coisa que doa demais.
Eu tenho tantos buracos negros no meu cérebro. As memórias são sugadas e nunca mais voltam. Deve haver pedaços de mim simplesmente flutuando lá fora no éter - peças que foram roubadas de mim. Peças que são esquecidas.

Eu lembro que meus pais chamaram a polícia e que toda a minha família estava em minha casa quando o sol nasceu.

Depois, espaço em branco.

Eu sei que fui à delegacia de polícia e dei uma depoimento. Não me lembro de nada disso.
A última coisa que eu consigo me lembrar daquele dia é de estar na casa da minha avó. Nós não fomos para casa depois de sairmos da delegacia. Minha família se reuniu na minha avó naquela noite. Ela era um ímã da nossa família - sempre cozinhando e nos recebendo. Ela, no entanto, não cozinhou naquela noite.

Nós pedimos pizza. Durante o jantar, os policiais chegaram à casa para dizer que ele tinha sido preso. Meu pai me contou depois que o cara confessou tudo à polícia.

Eu não lembro como eu me senti. Outro espaço em branco.

Eu tinha um treino de basquete naquela noite. Eu fui até o meu pai e disse que eu ainda queria ir. Ele mal podia acreditar. Com tudo o que eu havia passado, a única coisa que eu eria era jogar basquete.

De certa forma, eu ainda sou a mesma de quando tinha 11 anos e só queria jogar. Eu nunca fiz terapia. Não queria falar sobre isso. Eu não queria reviver tudo. Era algo que eu tentei afastar o mais longe possível. Mas isso só funciona de certa forma.

Eu chorei. Eu choro mais depois de contar a alguém que é importante para mim. Falar sobre o que eu passei, explicando tudo, acaba comigo. Eu sou forçada a reviver isso. O que aconteceu foi real. Não foi apenas um pesadelo terrível. N ão foi uma outra vida que eu vivi em outro tempo.

Tenho raiva por ele ter se aproveitado pelo fato de eu ser criança. Nunca vou conseguir ter esse tempo de volta. E as memórias que eu ainda tenho, nunca serei capaz de apagar. Às vezes, eu desejo ter mais alguns buracos negros.

Mesmo que eu jogue em frente a milhares de pessoas ou fale com repórteres o tempo todo, tenho momentos silenciosos todos os dias que ninguém vê. Muitas vezes, quando penso nisso. Eu posso estar cercada por minhas parceiras de equipe ou amigos ou estranhos, vivendo a vida como eu normalmente faria, que as memórias surgem como um raio.

Eu me pergunto quantas vezes o que passei foi um catalisador para chegar onde eu estou ou no que eu estou fazendo agora. Mesmo depois que ele foi preso, e do processo legal, eu ainda não sei como chamar o que ele fez comigo. Me sinto desconfortável até mesmo de nomear isso.

Eu nunca o perdoarei.

Mas não tenho vergonha.

Toda vez que eu conto a alguém, eu fico um pouco mais desanimada. Eu queria que fosse tão simples quanto dizer que é só algo que aconteceu comigo. Parte disso é bem simples - literalmente, é algo que aconteceu. Mas eu não sei por que aconteceu. Não sei por que isso acontece. Ou por que os abusos sexuais continuam acontecendo.

Eu sei que estou fazendo algo completamente fora de mim, escrevendo isso. De fato, essa é uma das coisas mais difíceis que já fiz e sempre farei. Mas eu estava lendo recentemente a conta pessoal de McKayla Maroney sobre abuso sexual - uma das muitas histórias poderosas que a campanha #metoo inspirou - e eu senti ... menos sozinha.

Talvez esse seja o ponto. Nossas experiências são diferentes. A forma como lemos é diferente. Mas as nossas vozes fazem diferença.

Eu também pensei no que meu pai me falou mais de uma vez:
"Não é um segredo pequeno e sujo. Quando você se sente confortável com isso, quando estiver à vontade para se abrir, você pode salvar a vida de alguém".

É por isso que estou escrevendo isso. Isso é maior do que eu.

Ainda estou trabalhando no que virá a seguir ao fato de eu contar a minha história. Ao compartilhar isso, eu sei que não importa o quão desconfortável eu fique normalmente quando estou falando coisas sobre mim, como uma sobrevivente, sei que assumi uma certa responsabilidade. Então vou começar dizendo isso: se você está sendo abusado, conte a alguém. Se essa pessoa não acredita em você, conte a outra pessoa. Um pai, um membro da família, um professor, um treinador, o pai de um amigo. A ajuda está aí.

Parte do motivo pelo qual eu esperei tanto tempo para contar a tantas pessoas - mesmo as que estão muito perto de mim - é porque eu não quero ser definida por isso mais do que eu quero ser definida por quão bem eu jogo basquete. Ambas as coisas são parte de mim - eles me fazem ser quem eu sou. Todos somos um pouco mais complicados do que parecemos ser.
E eu finalmente posso dormir."

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Assim que o texto se tornou público, a estrela do basquete recebeu apoio de outras personalidades do esporte, caso da também jogadora da bola laranka, Elena Delle Donne. "Quanta coragem desse lindo ser humano. Obrigada, Stewie. Você vai salvar muitas outras", escreveu em seu Twitter. "Obrigado, Breanna, pela força, a coragem e disposição para compartilhar sua história", afirmou o técnico de basquete da Universidade de Duke, Jeff Capel.

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