Como as mulheres tornaram os EUA uma máquina de medalhas

País colhe frutos de lei criada nos anos 70 que obriga escolas e universidades a investirem o mesmo em esportes para meninos e meninas

Durante um bom tempo, o número de esportes olímpicos disputados por mulheres foi bem menor que o de homens. A mudanças veio aos poucos - no atletismo, modalidade mais tradicional dos Jogos, elas só puderam competir mais de 30 anos depois que eles.

Apenas nos Jogos de 2012, em Londres, é que, pela primeira vez, com o advento do boxe feminino, as mulheres puderam competir em todos os esportes olímpicos. Mesmo assim, os preço dos ingressos ainda são desiguais - nos Jogos do Rio, alguns ingressos para finais femininas chegam a custar 80% menos do que o equivalente masculino.

Foto: Divulgação
Missy Franklin, nadadora dos EUA

Mas se teve um país que apostou em uma política de igualdade de oportunidades no esporte e hoje colhe os frutos disso, esse país é os Estados Unidos.

Em 2012, nos Jogos de Londres, os americanos conquistaram o primeiro lugar do quadro de medalhas principalmente por conta dos resultados das mulheres: enquanto os homens trouxeram 45 medalhas para os Estados Unidos, elas foram responsáveis por 58. Em ouros, a diferença também é grande - mulheres conquistaram 12 a mais do que os homens.

Nenhum outro país teve esse desempenho. A China teve apenas 50 pódios obtidos por mulheres, seguida pela Grã-Bretanha, que obteve 22.

Em ouros, as americanas também estão disparadas à frente: 29, contra 20 das chinesas e 10 das britânicas.

Os Jogos de 2012 também foram os primeiros em que a delegação dos EUA levou mais mulheres do que homens. De um total de 530 atletas, 269 eram mulheres.

Esses resultados não são coincidência, mas consequência, em boa parte, de uma lei americana. A Title IX, criada em 1972, impôs que as instituições de ensino proporcionassem as mesmas oportunidades educacionais para homens e mulheres - e, com a forte cultura esportiva do país, trouxe consigo a igualdade em investimento no esporte para ambos os gêneros.

"Eu pratiquei esportes por toda a minha infância, jogava futebol, softbol, tênis...mas quando cheguei à universidade, ela me fechou as portas. Só havia bolsas para homens atletas, mulheres não tinham o direito de praticar esportes ali", contou à BBC Brasil Deborah Larkin, hoje CEO da ONG americana Women's Sports Foundation (Fundação dos Esportes Femininos) que tem, entre outras funções, a de garantir o acesso de todas as meninas e mulheres ao esporte.

Na prática, universidades e escolas foram obrigadas a igualar o número de vagas de bolsas de estudos oferecidas para programas esportivos femininos e masculinos e também a proporcionar a mesma estrutura de treinamento, instrução e desenvolvimento para homens e mulheres nos ambientes educacionais.

No esporte, o efeito da lei pode ser percebido nos números: em 1972, uma em cada 27 meninas praticava esportes nos Estados Unidos. Atualmente, a estatística está em uma em cada três - entre os meninos, um em cada dois.

"Quando a lei foi criada, os homens diziam que não haveria problemas, porque logo eles veriam que meninas não queriam praticar esportes, que nós não gostamos de suar e que aquilo não era para nós. Eles achavam que, mesmo com a lei, as meninas iriam continuar preferindo não fazer esportes", afirmou Larkin.

"Mas adivinha o que aconteceu? Quando as oportunidades foram dadas, nós aparecemos em números recordes."

A lei completou 40 anos justamente em 2012, ano em que os Estados Unidos chegaram ao topo do quadro de medalhas olímpicas com as mulheres tendo conquistado 63% dos ouros do país.

"Sem a Title IX, nada disso teria acontecido", diz Brian Fobi, professor de ética, história e legislações no esporte da Universidade de Harvard e PhD em história por Yale. "Se a lei não existisse, a delegação olímpica americana provavelmente seria como era antes, e por causa da Title IX, as mulheres ultrapassaram os homens em número de medalhas."

Fobi explica que há outros países com forte investimento específico em esportes femininos, como, por exemplo, a China, mas que iniciativas como a dos EUA, que "igualou" o incentivo ao esporte pela lei, são raras.

"A China investe em esportes femininos, mas isso é relacionado diretamente àqueles que têm chances de medalha. Alguns países europeus investem também, mas a estrutura americana é diferente pela relação que tem com as universidades."

"Você pode ver pelo quadro de medalhas que os países que se dão melhor são os que se importam com esportes femininos. A maioria dos países sul-americanos não investe", disse.

No Brasil, o investimento em esporte na escola é escasso para ambos os gêneros, mas no profissional, a desvantagem das mulheres é evidente.

Basta ver a situação do futebol feminino: o país só passou a ter um campeonato nacional em 2013, 17 anos depois da modalidade estrear em Olimpíadas.

A ex-jogadora Sissi, uma das principais craques da seleção na década de 1990 e que há 12 anos dirige equipes de meninas nos Estados Unidos, deixa claro como é diferente a situação nos dois países.

"Eu falo para as meninas que treino (nos EUA) que elas são privilegiadas, elas têm programas esportivos, clubes, as universidades. No Brasil não tem nada disso. Quando eu conto para elas sobre minha história, tudo o que tive que enfrentar para jogar futebol, elas ficam horrorizadas", afirmou.

"Por isso que os Estados Unidos se tornaram essa potência. O Brasil teria condições, principalmente no futebol feminino, porque tem talento de sobra, só falta investir."

Resistência e efeitos

Nus EUA, segundo Larkin, a lei Title IX trouxe uma mudança fundamental na cultura esportiva jovem: o incentivo ao esporte agora era para ambos, meninos e meninas.

"Nos Estados Unidos, a cultura esportiva é muito vinculada à universidade, e como as meninas sabiam que não poderiam conseguir bolsas nas faculdades pelo esporte, elas desistiam", explica.

"A lei mudou isso porque fez com que elas quisessem continuar no esporte para conseguir entrar na universidade. Os pais perceberam que isso era bom e incentivaram suas filhas no esporte porque sabiam que assim não precisariam pagar faculdade para elas."

Além de ter incrementado o desempenho dos EUA em competições internacionais, a lei é creditada com o papel de ter ajudado a diminuir a desigualdade de gênero no país.

"O esporte faz as meninas aprenderem a traçar metas, a vencer, a perder, a liderar", afirma Larkin, citando uma pesquisa da Ernst & Young que revelou que 94% das mulheres em cargos altos do mundo dos negócios disseram que o esporte foi muito importante para o sucesso delas.

"O mais importante é que ele (o esporte) dá a elas a confiança para acreditarem que podem alcançar o que quiserem. Que podem ser o que quiserem."

Mas a Title IX também recebeu fortes críticas. Para se adequar à lei sem mexer no orçamento, muitas universidades deslocaram recursos normalmente dirigidos a esportes majoritariamente masculinos como luta livre e beisebol.

"Os homens chegaram a ir à Justiça", relata Fobi. "Eles alegavam que os programas esportivos para eles estavam diminuindo e diziam que estavam sendo discriminados por serem homens."

Mas eles perdiam os processos - os tribunais, segundo Fobi, reconheceram que os homens se benficiavam, no passado, de um sistema desigual e que haveria "perdedores" na transição até a igualdade.

Desafios

Apesar dos avanços, a CEO da Women's Sport Foundation aponta para alguns desafios que as mulheres ainda têm pela frente, como a diferença de pagamentos entre atletas homens e mulheres, e a falta de atenção da mídia com os esportes femininos.

Ela cita o exemplo da seleção feminina de futebol, que é tricampeã mundial, tetracampeã olímpica e recebe quatro vezes menos por jogos e amistosos que a seleção masculina, que não tem nenhuma dessas conquistas.

"Mais importante de tudo, nós precisamos ter mais cobertura de mídia de esportes femininos. Meninas querem chegar onde outras mulheres chegaram, se elas veem mais mulheres competindo, elas vão querer competir também", afirma.

Para Brian Fobi, de Harvard, o problema também está na cobertura da mídia. "Cerca de 2% do tempo dos programas esportivos da ESPN aqui são dedicados a esportes femininos. Então é um ciclo vicioso. Muitos argumentam que as pessoas não gostam de esportes femininos, mas eu acredito que isso é porque elas não os conhecem."

"Existe um grande mercado esportivo nos Estados Unidos e esse mercado poderia incluir esportes femininos. Mas a questão é que as empresas de mídia são conservadoras e têm medo de 'arriscar'. Só que esse é um mercado ainda muito pouco explorado, então poderia trazer um retorno enorme com um investimento pequeno."

O efeito do sucesso das atletas americanas em Londres inspirou mais meninas a praticar esportes, segundo Larkin, que reforça: quanto mais espaço a mídia der para modalidades femininas, maior será o sucesso das mulheres no esporte no país.