
Um erro simples de matemática causou um dos maiores absurdos do futebol paulista e obrigou dois times a dividirem uma taça de campeão.
Essa lambança aconteceu na final do Campeonato Paulista de 1973 .
Santos e Portuguesa disputavam a final do Paulistão, após o Santos ter vencido o primeiro turno do campeonato e a Portuguesa o segundo turno.
A decisão do torneio seria disputada em jogo único, no estádio do Morumbi, em 26 de agosto de 1973.
O jogo seria apitado por Armando Marques, um dos principais árbitros brasileiros, que já tinha trabalhado em várias finais de Campeonato Brasileiro, Paulista, Carioca, Mineiro e também apitado uma partida na Copa do Mundo de 1966.
- Veja também: Os bastidores da primeira Libertadores, em 1960
O Santos tinha um elenco estrelado, com vários jogadores que participaram da campanha do tricampeonato da Seleção Brasileira em 1970, como Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Edu e Pelé.
O Santos era treinado por Pepe, lendário jogador do próprio Santos e também da Seleção Brasileira.
A Portuguesa também tinha bons nomes em seu elenco, como o atacante Cabinho, que é até hoje o maior artilheiro do Campeonato Mexicano, com 312 gols marcados.
A Lusa ainda tinha Basílio, que anos depois viraria ídolo do Corinthians, e Enéas, segundo maior artilheiro da história da Portuguesa e considerado um dos maiores jogadores a defender o clube.
A final conturbada entre Peixe e Lusa
A regra da final do Paulistão entre Santos e Portuguesa era a seguinte: em caso de empate seria disputada uma prorrogação de 30 minutos, e em caso de empate na prorrogação, a decisão iria para os pênaltis.
E, claro, se algum dos times vencesse o jogo no tempo normal ou na prorrogação, seria o campeão.
Mais de 130 mil pessoas lotaram as arquibancadas do Morumbi, com uma arrecadação recorde em bilheteria: 1 milhão e meio de cruzeiros.
Em campo o Santos dominou o jogo e teve as melhores chances de abrir o placar, principalmente em jogadas criadas por Pelé.
Esse seria o último título que o Rei do Futebol conquistaria no Santos. Ele ainda disputaria alguns jogos em 1974 e em seguida se transferiria pro New York Cosmos, dos Estados Unidos.
Ele ainda seria o artilheiro do campeonato, com 11 gols.
No segundo tempo, a Portuguesa melhorou e até ameaçou o gol santista, mas a melhor chance da partida foi mesmo de Pelé, acertando a trave em uma cobrança de falta.
Cabinho chegou a abrir o placar para a Portuguesa em um gol que foi anulado pelo árbitro por impedimento, sob protestos dos jogadores da Lusa.
A partida foi para a prorrogação e o placar continuou inalterado. Final de jogo, Santos 0, Portuguesa 0.
As penalidades e o erro de cálculo
O Campeonato Paulista de 1973 seria decidido nos pênaltis e o juiz Armando Marques pegou seu papelzinho, sua caneta e começou a anotar a contagem dos pênaltis.
Lá em 1973, a regra do futebol obrigava que em uma decisão por pênaltis todas as 5 cobranças fossem realizadas, independente se algum time não tivesse mais chances de vencer.
Por exemplo, se o time A cobra 3 pênaltis e acerta todos, e o time B erra os 3 pênaltis, o time B já perdeu, afinal ele não conseguiria chegar aos 3 gols e empatar a série.
Mesmo assim, a regra obrigava que fossem cobrados 5 pênaltis para cada lado.
A disputa de pênaltis começou e o Santos inaugurou a série, com Zé Carlos cobrando e o goleiro Zecão defendendo.
Isidoro desperdiçou a chance da Portuguesa passar a frente do placar, parando nas mãos do goleiro santista Cejas.
Em seguida, Carlos Alberto Torres fez o primeiro gol do Santos.
A Portuguesa teve a chance de empatar com Calegari, mas novamente o goleiro do Santos defendeu.
Edu foi para a cobrança e marcou o segundo gol santista.
Wilsinho tentou fazer o primeiro gol da Portuguesa mas mandou na trave.
O placar mostrava 2 a 0 para o Santos, faltando ainda 2 pênaltis a serem batidos para cada lado.
Porém, logo após a cobrança do Wilsinho na trave, o árbitro Armando Marques encerrou a disputa de pênaltis e declarou o Santos campeão, para festa dos jogadores santistas.
O problema é que a Portuguesa ainda poderia empatar a decisão. Se a Portuguesa marcasse os dois próximos pênaltis e o Santos errasse as duas cobranças, ficaria tudo empatado e aí seriam cobrados pênaltis alternados, até que alguém vencesse a disputa.
Mas lá em 1973 ninguém parou para fazer essa conta, nem o árbitro, nem os jogadores do Santos e nem os jogadores da Portuguesa.
Somente uma pessoa percebeu a confusão. O técnico da Portuguesa Otto Glória .
O Otto tem um currículo absurdo no futebol. Ele treinou dezenas de times no Brasil, Portugal, Espanha, França, México, além de ser o treinador da Seleção Portuguesa na Copa do Mundo de 1966, quando conquistou o terceiro lugar no torneio.
A experiência do Otto Glória falou mais alto e logo que o árbitro encerrou a disputa de pênaltis, ele tratou de levar os jogadores da Portuguesa para o vestiário e colocou todo mundo no ônibus para irem embora do estádio o mais rápido possível, antes que alguém percebesse o erro matemático.
O árbitro refez as contas, mas já era tarde
Durante as cobranças, o bandeirinha Emídio Marques de Mesquita ficou no meio do campo ao lado dos jogadores, enquanto o outro auxiliar, José de Assis Aragão, ficou ao lado do gol e o árbitro Armando Marques no meio da área, acompanhando as cobranças.
Emídio Marques disse que saiu correndo logo após o Armando Marques encerrar a disputa, mas no meio da confusão dos jogadores comemorando e de jornalistas invadindo o campo, só conseguiu alcançar o árbitro no túnel de acesso ao vestiário.
Assim que encontrou o árbitro, o bandeirinha alertou que ainda faltavam algumas cobranças de pênaltis a serem feitas, mas o árbitro teria respondido que não havia nenhum erro, que o Santos era o campeão e fim de papo.
O delegado do jogo também alertou o árbitro sobre o erro e foi só aí que ele percebeu a besteira.
Enquanto os jogadores do Santos comemoravam no gramado, o Armando Marques correu para o vestiário da Portuguesa para chamar os jogadores de volta ao campo para finalizar as cobranças de pênaltis.
Só que o treinador Otto Glória já tinha levado todo mundo embora. Então, se o time não estava no estádio, como eles iriam continuar a decisão?
O Basílio, jogador da Portuguesa nessa partida, lembrou em entrevista que ele estava em campo cumprimentando os jogadores do Santos e um diretor da Portuguesa apareceu correndo e obrigando o jogador a ir para o vestiário.
Porém, quando ele se dirigia ao vestiário, o diretor disse que a nova ordem era todo mundo ir para o ônibus sem nem passar pelo vestiário.
Para o Basílio, o culpado da confusão matemática do Armando Marques foi o Pelé, que acabou induzindo o árbitro ao erro.
"Quando o Santos cobrou o último pênalti, o Pelé saiu comemorando. O árbitro Armando Marques pegou a bola e levantou para o alto, indicando que o Santos era o vencedor ", contou Basílio.
O Campeonato Brasileiro começaria três dias depois da decisão do Paulistão, então não haveria tempo de realizar uma nova disputa entre Santos e Portuguesa.
Após uma conversa entre o árbitro, dirigentes da Federação Paulista de Futebol e os presidentes de Santos e Portuguesa, ficou decidido que o título paulista de 1973 seria dividido entre os dois times.
O árbitro Armando Marques foi entrevistado por jornalistas após o jogo e assumiu a culpa: “Não foi um erro de direito, foi um erro matemático. Pensei que o Santos tinha uma vantagem matemática insuperável sobre a Portuguesa. A culpa foi toda minha” .
No dia seguinte à partida, jornalistas questionaram o assessor jurídico da Federação Paulista sobre a divisão do título e se isso seria justo com os torcedores.
A resposta dele foi, no mínimo, curiosa: “A torcida até que viu futebol demais pelo preço que pagou” .
Dois dias depois o jornal Folha de São Paulo estampava a manchete: “Atenção para as falências decretadas domingo nesta capital, a falência do futebol paulista e a falência do Sr. Armando Marques” .
Esse acabou sendo o último título paulista da Portuguesa, que ainda foi vice-campeã em 1975 e 1985.
O Santos tem uma história mais rica em se tratando de títulos. Hoje o time é o terceiro maior campeão paulista, ao lado do São Paulo, com 22 títulos.
O árbitro Armando Marques ainda apitou um jogo na Copa do Mundo de 1974 e no mesmo ano acabou protagonizando outro erro histórico na final do Brasileirão entre Vasco e Cruzeiro, anulando um gol legítimo do Cruzeiro, que daria o título ao clube mineiro.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG