Felipe Ernesto

Allan Cole: o amigo de Bob Marley que jogou no Náutico

O Pelé da Jamaica que desafiou treinadores e imprensa para jogar no Brasil em 1972

Allan Cole entrando em campo pelo Náutico em 1972
Foto: Reprodução
Allan Cole entrando em campo pelo Náutico em 1972
{!$sinalizador_ad$!}

Futebol e música às vezes se misturam de maneiras completamente aleatórias. A história que envolve o maior cantor de reggae de todos os tempos e um dos maiores times de Pernambuco é um ótimo exemplo disso.

Tudo começou em 1971, quando o Náutico foi convidado pra disputar alguns amistosos na América Central. Nessa época era bastante comum os clubes brasileiros fazerem excursões pelo mundo.

Isso acontecia, primeiro, porque o calendário do futebol brasileiro, apesar de bastante bagunçado, permitia algumas janelas de oportunidades para os clubes viajarem.

E segundo, esses amistosos eram uma ótima maneira de ganhar dinheiro em uma época em que as receitas dos clubes estavam bem longe de atingir os milhões de reais como nos dias de hoje.

Em 1971 um empresário indiano contratou o Náutico para essa excursão na América Central. O combinado era de que o Náutico disputasse 8 jogos. A diretoria do Timbu receberia 800 dólares por partida, além de todas as despesas pagas.

Essa seria uma ótima oportunidade para o Náutico, afinal os salários dos jogadores estavam atrasados há alguns meses. Com a quantia que seria recebida, era possível colocar as contas em dia e até adiantar o salários de alguns jogadores.

A excursão do Náutico passaria por Trinidad e Tobago, Jamaica e Haiti. O Náutico enfrentou três vezes a seleção de Trinidad e Tobago, vencendo uma partida, empatando outra e perdendo a terceira.

Depois venceu o Ferhind, de Suriname. Em seguida, encarou dois amistosos contra a seleção da Jamaica, com 1 vitória e 1 empate.

Finalizando a excursão, o Timbu empatou duas vezes contra a seleção do Haiti.

Nos dois jogos contra a seleção jamaicana, o Náutico enfrentou um adversário ilustre: o Allan "Skill" Cole . Além de ser um dos melhores jogadores da Jamaica, Cole também era um dos melhores amigos de Bob Marley .

A amizade com o Rei do Reggae

Bob Marley foi responsável por levar o reggae pra todos os cantos do mundo e influenciou todas as bandas de reggae que surgiram depois dele. O cantor também gostava de jogar futebol e quem conheceu o cantor de perto afirma que ele era bom de bola.

Em uma visita ao Rio de Janeiro em 1980, Bob Marley não cantou para o público, mas entrou em campo pra uma pelada ao lado de vários músicos brasileiros, entre eles Chico Buarque, Moraes Moreira, Toquinho e Evandro Mesquita.

Quem também bateu uma bolinha com Bob Marley nesse dia foi Paulo César Caju, tricampeão com a Seleção Brasileira na Copa de 1970.

Esse título do Brasil na Copa de 70 era um dos motivos da paixão do Bob Marley e dos jamaicanos pelo futebol brasileiro. “A Jamaica gosta de futebol por causa do Brasil” , afirmou Bob Marley durante a visita ao Brasil em 1980.

Essa devoção dos jamaicanos pelo futebol canarinho facilitou as coisas para um outro jamaicano jogar por um time brasileiro. Ainda durante a excursão do Náutico pela Jamaica, a diretoria do time decidiu fazer uma proposta: convidar Allan Cole para jogar pelo Náutico.

Cole aceitou o convite na hora e no dia seguinte à partida contra a Jamaica, embarcou com a delegação do Náutico para o Haiti, para acompanhar os últimos jogos da excursão do time.

Uma semana depois, em novembro de 1971, Allan Cole desembarcava em Recife para começar a sua curiosa trajetória como jogador do Náutico.

Já no Brasil, Cole despertou a atenção da imprensa, que apelidou o jogador de "Pelé da Jamaica", graças a sua habilidade com a bola nos pés.

Em 1971, a capital pernambucana tinha oficialmente menos de 4 mil moradores estrangeiros, a grande maioria portugueses e italianos.

Mas jamaicano não havia nenhum. Allan Cole provavelmente seria o primeiro cidadão nascido na Jamaica a morar na cidade.

O jogador ficou hospedado num casarão no bairro do Espinheiro, local que era usado pelo Náutico como concentração e também como moradia para vários jogadores. 

Camutanga, companheiro de clube de Allan Cole no Náutico, em entrevista ao Globo Esporte, afirmou que o jamaicano era gente boa e brincalhão, e que os jogadores do Náutico foram ensinando algumas palavras em português para ele, principalmente palavrões.

O primeiro jogo do Pelé da Jamaica pelo Náutico

A estreia de Allan Cole pelo Náutico aconteceu ainda em novembro. A partida, apesar de ser um jogo amistoso, era contra o Sport, um dos maiores rivais do Náutico.

O jogo aconteceu no dia 28 de novembro de 1971 no estádio dos Aflitos e mais de 8 mil torcedores ocuparam as arquibancadas para ver a estreia do jogador jamaicano.

Os jogadores do Sport aproveitaram para tirar um sarro do jogador logo nos primeiros minutos de jogo. Segundo uma reportagem do jornalista Lenivaldo Aragão no Diário de Pernambuco, os jogadores que estavam no banco de reservas do Sport eram os que mais criticavam a atuação de Allan Cole.

Logo no primeiro lance, Cole perdeu o controle da bola e Ubaldo mandou “pode até jogar, mas só do jeito dele” . Em seguida, depois de mais uma jogada que não deu certo, Afonso deu uma cutucada: “o Alan Cole já está cansado ”.

Porém, quem abriu o placar do jogo foi justamente Allan Cole. A reportagem do Diário de Pernambuco resumiu o gol dessa maneira: "A bola veio da direita, o Allan matou no peito e deu a impressão de que estava indeciso ou pelo menos procurando a melhor posição pro chute, e aí chutou pro gol, sem nenhuma chance pro goleiro Tobias. Abraços pra Allan Cole e desapontamento entre os rubronegros do Sport."

O primeiro tempo do amistoso entre Náutico e Sport terminou com o placar de 1 a 0 para o Náutico.

Na segunda etapa, a atuação de Allan Cole foi mais apagada. O técnico do Náutico, Nelson Lucena, até gritou com os seus jogadores para acionarem mais vezes o jamaicano, que estava esquecido em campo.

Cobrando falta, Vanderlei empatou o jogo paro Sport e o placar de 1 a 1 foi mantido até o final.

No final do jogo, Allan Cole estava cansado mas respondeu a todos os repórteres com um sorriso e palavras misturadas em inglês e português. Além disso, tomou duas garrafas de refrigerante e reclamou do calor de Recife. Cole também demonstrou alegria por ter marcado um gol logo na sua estreia pelo Náutico.

Em outro texto da reportagem do Diário de Pernambuco, Allan Cole foi elogiado de um jeito contraditório. Primeiro, o texto afirmou que "nenhum dos estrangeiros contratados para clubes recifenses produziu tanto quanto ele na estreia" . Depois, a reportagem completou mencionando que  "Allan Cole não foi nenhum assombro e só quem não entende nada de futebol poderia esperar outra coisa de um atleta da Jamaica" .

Depois de marcar um gol logo no primeiro jogo, a expectativa da diretoria do Náutico em relação ao Allan Cole eram as melhores. Mas uma semana depois do amistoso contra o Sport, Cole simplesmente pegou um avião e voltou pra Jamaica.

Segundo relatos, o problema entre ele e os dirigentes do Náutico era financeiro. O Náutico oferecia 200 dólares mensais, mas Allan Cole exigia 400. A diretoria do clube não topou e Cole retornou para a Jamaica.

O retorno de Allan Cole

Menos de 2 meses depois, o Náutico recebeu um telegrama de Allan Cole. A carta chegou a Recife em 21 de janeiro de 1972 e dizia “Cole decide to return Brasil” .

Em fevereiro, o médico do Náutico, Omar Braga, viajou até a Jamaica e finalmente o contrato entre Náutico e Allan Cole foi assinado: ele era oficialmente jogador do Timbu.

Omar Braga, médico do Náutico, e Allan 'Skill' Cole assinando contrato em 1972
Foto: Reprodução
Omar Braga, médico do Náutico, e Allan 'Skill' Cole assinando contrato em 1972

Entre fevereiro e maio de 1972, Allan Cole jogou algumas partidas do Campeonato Pernambucano. O Náutico terminou o torneio na terceira colocação.

Entre julho e agosto, o Náutico disputou o Torneio Eraldo Gueiros, competição criada pela Federação Pernambucana de Futebol pra manter os times do estado em atividade durante a pausa entre o Campeonato Estadual e o Campeonato Brasileiro.

O torneio foi vencido pelo Náutico e deu uma vaga ao time para disputar o Campeonato Brasileiro de 1972.

No Brasileirão, o Náutico não fez uma boa campanha, terminando a primeira fase na 19ª colocação e ficando de fora da zona de classificação para a segunda fase.

As atuações do Allan Cole também não agradavam a comissão técnica do time. Antes do jogo contra o Sergipe, na 11ª rodada, o técnico do Náutico, Gradim, mandou o recado: “Ou esse gringo me mostra que sabe jogar, ou mando rescindir seu contrato” .

Ao longo da sua trajetória pelo Náutico, Allan Cole entrou pouco em campo e sofreu com diversas lesões. Também teve que fazer uma operação para a retirada das amígdalas.

Com a campanha ruim no Brasileirão de 72, o Náutico trocou de técnico no começo de 73. Saiu Gradim e entrou em seu lugar João Avelino, que também não se mostrou disposto a contar com Allan Cole em seu elenco.

Em janeiro de 1973, depois das férias de final de ano, Allan Cole era esperado para se reapresentar no Náutico. Mas o jogador chegou 4 dias atrasado. O motivo? Uma luta de boxe.

Como era muito fã de boxe, o jogador resolveu estender suas férias em Kingston, na Jamaica, para assistir a luta entre George Foreman e Joe Frazier.

Quando perguntado se não tinha medo de sofrer uma multa ou algum tipo de punição pelo Náutico, respondeu de maneira enfática: “Antes de tudo o clube está em falta comigo, salários atrasados. Se não me querem mais, volto à minha terra” .

Foto: Reprodução
Allan Cole enfrentou preconceito com seu visual pouco comum para a época

O novo técnico do Náutico, João Avelino, um tanto preconceituoso, não gostava do cabelo black power de Allan Cole, e o jogador também foi incisivo quando questionado pela reportagem do Diário de Pernambuco.

“Os meus cabelos ninguém me obriga a cortá-los. É um costume de minha religião muçulmana e que não posso deixar de desobedecê-la. Isso eu nunca faria, mesmo que tivesse de deixar o futebol”.

O fim de uma história de pouco sucesso

No dia 1º de fevereiro, uma sexta-feira, a diretoria do Náutico rescindiu o contrato com o jogador, pagando a ele 23 mil cruzeiros referente a luvas e salários atrasados.

Pelo Náutico, Allan Cole disputou 20 partidas e marcou 3 gols. Um na estreia, naquele amistoso contra o Sport, outro em mais um amistoso contra o Central de Caruaru, e outro contra o Ferroviário, pelo Torneio Eraldo Gueiros.

A previsão era de que jogador voltasse à Jamaica logo após deixar o Náutico. Mas alguns dias depois, não só Allan Cole permanecia no Brasil como também negociava um contrato com o Santa Cruz.

A diretoria do clube queria que a estreia do jogador pelo time Coral fosse já num amistoso contra o Argentinos Juniors. Mas infelizmente isso nunca aconteceu e Allan Cole acabou retornando à Jamaica, onde assinou contrato para jogar pelo Santos... de Kingston, na Jamaica.

Por lá, ele foi campeão jamaicano em 1974 e chegou a enfrentar o New York Cosmos, onde Pelé jogava. Contra o time do Rei do Futebol, o Santos jamaicano venceu por 1 a 0.

Pouco tempos depois de chegar ao Santos de Kingston, Allan Cole encerrou sua carreira como jogador.

Depois do futebol, Allan Cole passou a se dedicar a carreira de empresário e produtor do seu amigo de adolescência, o Bob Marley. Cole ajudou o cantor e sua banda The Wailers a chegarem às rádios de todo o mundo.

Cole também aparece como autor de várias músicas da carreira do Bob Marley, entre elas a famosa “War”. A faixa tem uma frase bastante famosa, que diz “Enquanto a cor da pele for mais importante do que o brilho dos olhos, haverá guerra” .

Apesar de ser um dos autores da música “War”, essa frase não é de Allan Cole, mas sim de um discurso do ex-imperador etíope Haile Selassie, em 1936, na Liga das Nações (a antecessora da ONU). Haile Selassie é uma espécie de divindade para o movimento rastafari, do qual Allan Cole faz parte.

Bob Marley faleceu bastante jovem, em 1981, aos 36 anos, e até a data da sua morte conviveu lado a lado com Allan Cole.

Em 2002, Cole estampou as manchetes policiais da Jamaica, quando foi preso em sua casa, na Jamaica. A polícia encontrou no local quase 150 quilos de maconha, crime pelo qual Allan recebeu uma condenação de 1 ano e meio de prisão.

Após ser libertado ele continuou morando em Kingston, cidade onde viveu até setembro de 2025, quando faleceu aos 74 anos.