Para Luís Horta, atletas 'limpos' poderiam reclamar diretamente com o governo russo, que seria o responsável pelos casos de doping.
O escândalo de doping da Rússia divulgado no início da semana chocou o mundo do esporte e colocou em xeque a participação do país na Olimpíada do Rio de Janeiro. O atletismo russo já havia sido banido da competição, mas neste domingo, a algumas semanas do início dos Jogos, o Comitê Olímpico Internacional (COI) decidirá se o restante dos atletas da delegação serão punidos da mesma maneira.
A discussão gera polêmica e divide opiniões, principalmente porque significaria punir atletas russos "limpos", que não fizeram uso de doping, por causa daqueles que fizeram. Mas para o português Luís Horta, ex-presidente da Comissão de Laboratórios da Agência Mundial Antidoping (Wada) e hoje consultor internacional da Agência Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), manter o país nos Jogos do Rio seria uma forma de "deslegitimar" a competição.
"Eu penso que o que temos que levar em consideração é o principio da proporcionalidade. Pensar se, na realidade, punir todos os atletas de um país é proporcional a defender a legitimidade dos Jogos Olímpicos. E, nesse caso, eu penso que é", afirmou ele, que também é doutor em medicina esportiva, à BBC Brasil.
"Os esportistas limpos querem ter o direito de competir limpos. Por isso julgo que essa deveria ser a punição (banir toda a delegação russa). Os atletas russos prejudicados não devem apresentar queixas ao movimento olímpico, mas sim ao governo russo, que é o grande responsável por isso."
O esquema revelado após uma investigação minuciosa da Wada apontou que o governo da Rússia operava um esquema estatal de doping que foi amplamente usado na preparação para a Olimpíada de Londres, em 2012, e durante os Jogos de Inverno de 2014, sediados pelo próprio país em Sochi.
De acordo com o relatório, o Ministério do Esporte russo "dirigiu, controlou e supervisionou" a manipulação de amostras de urina dos atletas, além de ter fraudado resultados.
"É difícil de um atleta de alto nível entender ou aceitar uma punição dessas. Mas o que sabemos é que as substâncias proibidas eram dadas aos atletas diluídas em whisky para os homens e em Martini para as mulheres. Atletas de alto nível não bebem com regularidade esse tipo de coisa. Ao menos deveriam questionar o que estavam tomando, eles são responsáveis pelo que bebem."
As autoridades russas disseram que as alegações da Wada são tão graves que uma investigação completa seria necessária, mas criticou a possibilidade de uma proibição de todos os atletas russos nos Jogos do Rio.
"Nós sinceramente não concordamos com a posição assumida pelo Sr. McLaren (autor do relatório), que acredita que a possível proibição de centenas de atletas russos limpos de participar nos Jogos Olímpicos é uma 'consequência desagradável' mas válida das acusações descritas no relatório", disse o Comitê Olímpico russo em um comunicado na terça-feira.
'Maior escândalo da história'
Luís Horta classifica esse como o maior escândalo de doping da história do esporte e que, portanto, deve ser punido como tal.
"Esse foi um acontecimento único, talvez o mais grave em toda a história da luta contra a dopagem no esporte", afirmou.
"Até aqui, o caso de (Lance) Armstrong - ciclista norte-americano - foi considerado o mais emblemático, mas o da Rússia é pior, porque envolve um número muito grande de atletas , e o próprio país, instituições de governo. Isso é muito grave, então tem que haver punição."
O caso de Lance Armstrong veio à tona em 2012, quando a Agência Antidoping dos Estados Unidos (Usada) apresentou um relatório provando o uso de substâncias ilícitas - e de um esquema de troca ilícita de amostras em exames de urina - pelo ciclista americano e o baniu do esporte.
Armstrong era um ídolo mundial por ter se recuperado de um câncer e vencido o Tour de France sete vezes seguidas. Na época em que o esquema foi revelado, a Wada afirmou que "Armstrong liderou o esquema mais sofisticado e bem-sucedido da história".
"No caso de Lance Armstrong, não se mostrou que houvesse qualquer envolvimento do governo dos Estados Unidos, da CIA, do FBI. Na Rússia, estamos num patamar completamente diferente. Nao havia conluio entre Usada e os laboratórios de controle de doping."
Lições
A punição ao atletismo russo já foi confirmada e a única "brecha" permitida pela Federação Internacional de Atletismo será permitir que alguns atletas do país possam competir com bandeiras neutras fazendo novos testes antidoping que comprovem que eles estão "limpos".
A decisão do COI sobre o futuro da Rússia na competição deve sair após reunião por convenção telefônica neste domingo.
Mas para o consultor internacional da Agência Brasileira de Controle de Dopagem, a grande lição de todo esse escândalo é que as instituições que controlam o doping no esporte precisam aprimorar sua supervisão - e, principalmente, precisam ficar mais atentas para identificar situações como essa, da Rússia, com mais rapidez.
"A grande conclusão que eu tiro é que todos nós que trabalhamos na luta contra a dopagem temos que ser menos reativos e mais pró-ativos", observou Luís Horta.
"Porque, na realidade, os problemas da Rússia eram levantados há muito tempo. Eu quando estava em Portugal fui confrontado com problemas no controle de atletas russos. Então já havia indícios de que algo de muito estranho estava acontecendo."
Horta reforça que o esporte envolve "cada vez mais dinheiro" e que, por isso, a possibilidade de atletas ou equipes ou países fazerem uso de doping para conseguir um resultado fica cada vez maior.
"Eu acho que temos que estar sempre com atenção máxima, porque enquanto estiver envolvido muito dinheiro em todo esporte a possibilidade disso acontecer é grande."
Como mudança que o esporte mundial deverá adotar para tentar inibir que casos como o da Rússia se repitam, ele cita a melhoria no controle de laboratórios e agências antidopagem no mundo.
"A supervisão da Agência Mundial Antidoping nessas instituições tem que melhorar. Isso é o próximo objetivo deles. Penso que é muito importante garantirmos que todas as organizações antidopagens sejam independentes do governo de seus países, porque só assim seria possível garantir uma segurança maior dos testes."